Manhã de uma quarta-feira na capital cearense, Reginaldo Chagas Cavalcante espera a vez para ser consultado no Centro Oncológico São Mateus – ICC. O pior já passou, mas a luta continua.
Explica-se. Reginaldo é o paciente. O atleta se chama Moré, atacante de 34 anos que está curado de um linfoma, câncer que atingiu o fígado e o baço, desde novembro de 2013, e precisa seguir em acompanhamento. De tempos em tempos o atleta tem que fazer a ponte área: Juazeiro do Norte-Fortaleza. “Você está ótimo. Vai voltar novamente com três meses”, indica já dentro do consultório o Dr. Franklin José Santos, especialista em hematologia e hemoterapia.
Na unidade médica, o jogador do Guarani de Juazeiro já conhece os funcionários, tem intimidade com o local. E aparentemente, não sente nenhum receio de ter que passar por avaliações. Atualmente, tem três gols no Cearense 2015. Tenta levar a agremiação do Cariri à semifinal. Mas o principal objetivo é a conquista de uma vaga na Série D do Campeonato Brasileiro, que lhe dará oportunidade de jogar até o final da temporada pelo time de Juazeiro.
Futebol de subúrbio
Dos campinhos de areia do Dendê, comunidade onde foi criado, ganhou ‘apetite’ para correr em busca das vitórias nas principais batalhas da vida. De início, Moré atuou na lateral direita. Mais à frente, conquistou espaço, marcou muitos gols. Era jogador de partidas de subúrbio desde os 14 anos. Acostumado a defender a equipe do bairro Edson Queiroz, às vezes também integrou um time da Cidade 2000 para conseguir alguns trocados.
O centroavante perdeu gosto na tentativa de virar profissional depois de uma reprovação em uma peneira de um projeto realizado no estádio Presidente Vargas. “O cara disse: ‘Você não precisa nem gastar mais dinheiro com a passagem de ônibus’, relembra. Reginaldo cresceu, virou adulto. Trabalhou por três anos em uma loja especializada em acessórios para veículos. O fortalezense era responsável por aplicar películas nos vidros dos carros.
“O Fabrício, meu primo, me chamou para jogar um amistoso no campo do Ceará. Deixou R$ 10 reais para eu pegar um mototáxi. O rapaz (mototaxista) falou assim: ‘Onde é?’ Eu disse que era no campo do Ceará. ‘Vai fazer o que lá?’ Eu disse que iria jogar. Ele perguntou de que (qual a posição) eu jogava. Eu falei: ‘atacante’. Ele disse: ‘Já pensou se você marca gol, tem um olheiro do Ceará e chama você?’ Eu falei: ‘Que você tivesse (sic) falando pela boca de um anjo’, revela o principal jogador da equipe do Varjota, agremiação a qual defendeu nesse dia, na vitória em cima do time sub-23 do Vovô, pelo placar de 2 a 1.
Foram dois gols do atacante Moré no êxito de virada. Dimas Filgueiras, ex-técnico principal do próprio Alvinegro, o chamou para assinar contrato. Virou atleta aos 23 anos. Em um intervalo de menos de três meses, entre o fim de 2003 e o início de 2004, conquistou a artilharia do Estadual da categoria, além de uma estreia com duas bolas na rede no profissional: vitória por 3 a 2 em cima do Boa Viagem, fora de casa.
A fase do ‘relâmpago’ chamou atenção. O radialista Gomes Farias chegou a criar uma expressão reproduzida também por torcedores: ‘Quem tem Moré, não precisa de Pelé’. “Eu costumo dizer: Quem tem Moré, não precisa de Dedé”, em tom de brincadeira explica o próprio atacante.
A visibilidade foi ampliada, mas nada que mudasse a postura simples do garoto que pescava na infância às margens do rio Cocó. O apelido vem desse tempo, das buscas pelo peixe ‘Moré’. O reconhecimento financeiro também não foi alterado. O Ceará não vivia com uma boa condição em caixa. Até o início de 2005, Moré tinha um salário de R$ 800.
Sem tanto espaço entre os titulares do Vovô, e ainda com propostas de algumas equipes, o atacante teve que lutar pelo direito do passe livre na justiça. Após o fato, atuou por Ferroviário, Icasa, ajudou o Bahia a subir à Série B. Jogou no Vitória, além de outras várias equipes.
Exterior
Teve experiências internacionais curtas na Suíça, Vietnã e Angola. Tempo bom para conhecer culturas diversificadas e também fazer o conhecido ‘pé de meia’. Com a ajuda da atual esposa, Cristiane, que é administradora, comprou uma casa bem estruturada no próprio bairro onde cresceu. Investiu em bens e passou a ajudar os amigos. “Eu recebo dinheiro e jogo na mão dela”, evidencia o atleta, que inclusive, tem o nome da mulher tatuado no corpo .
Em 2012, pelo próprio Leão do Mercado, marcou 13 gols no Cearense. Despertou interesse de Fortaleza e Ceará, contudo teve uma lesão grave no joelho. Após se recuperar da cirurgia de reconstrução de ligamento, no primeiro semestre do ano seguinte, se sentiu cansado em campo. Teve febre e ficou afastado dos campos.
Fé e volta por cima
“Eu sou católico. Sempre coloquei Deus na frente. Eu já tinha feito doações ao Instituto do Câncer antes mesmo da doença. Depois que eu tive, eu vi que as pessoas precisam muito de alimentos. Eu sempre tive muita fé. Quando Deus colocou essa doença, pode ter sido um propósito. Quando o médico me passou o diagnóstico, que eu tinha câncer, eu não me espantei. Deus é tão bom que ele me deu uma possibilidade de cura”, exalta. Moré passou por oito sessões de quimioterapia, perdeu aproximadamente 20kg. Entretanto, conseguiu se recuperar.
“Tem que manter a calma. É como dentro do campo, a gente tem que manter a calma. Quando eu soube que tava doente, pedi para minha esposa contar para poucas pessoas. Quando a pessoa está em um estado de doença, você precisa de pessoas que coloquem você para cima. Eu fiquei debilitado ao extremo, fazia tudo com a ajuda da minha esposa. Ela na minha frente brincava, na minha frente tinha força. Meu filho me dava carinho, dizia que iria passar”, indica.
Com tudo em cima, Moré tenta novamente voltar a ser goleador. Tem o apoio de Cristiane, dos filhos Riquelme, nome em homenagem ao ex-craque argentino, e Sarah, a caçula, menina de 3 anos. O jogador acredita que o futebol é passageiro, mas representa uma dádiva.
“Mudou (a vida dele) da água para o vinho. É uma maneira mais fácil de ser um cara pobre e ficar rico. É uma situação que você não tem nada. Eu tento ajudar, levar os jovens para times. Alguns possuem a cabeça fechada. Se metem no mundo das drogas. As pessoas acreditam que eu sou um incentivador”, conclui Moré. No bairro, todos acenam quando o atacante passa. A porta da casa do atleta está sempre aberta.
“Logo logo as pessoas vão observar minhas arrancadas desde o campo defensivo, saindo driblando. Sei do meu potencial e sei do potencial dos meus companheiros. Acho que a gente vai longe”, finaliza.
Por Lucas Catrib
Tribuna do Ceará