José Wilker posou para fotos onde morava, no Rio de Jeneiro
FOTOS: GUSTAVO PELLIZZON
GUSTAVO PELLIZZON
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Com a prematura morte de José Wilker, o Diário do Nordeste republica uma entrevista exclusiva com o ator, publicada REVISTA GENTE, em março de 2013:
Um cearense daqueles que tem orgulho da terra natal, sem, no entanto, deixar de ser cosmopolita no sentido mais amplo que a palavra permite. Ator e diretor de televisão, cinema e teatro, José Wilker recebeu a Revista Gente, em sua casa, no Rio de Janeiro, em março de 2013.
Cidadão do mundo, José Wilker queria ser tudo quando criança, menos ator. Talvez a curiosidade que o acompanhou desde sempre, assim como o afã pela independência, levaram-no a se encantar com a vida artística. Aos poucos, o cearense construiu uma galeria de tipos e personagens que conquistaram admiradores no Brasil e em outros países. O sucesso é resultado da valorização de suas raízes, do trabalho árduo e vontade de dar sempre o melhor de si. São quase quatro décadas de carreira, muitas viagens, experiências no teatro, cinema e televisão, vivências que o tornam mais ciente dos propósitos da existência e disposto a dividir um pouco do que aprendeu. Segundo as próprias palavras, devemos viver com desprendimento e com a obrigação de acharmos, cada qual, a nossa fórmula da felicidade.
São quase 40 anos dedicados à arte da atuação, sendo referência na teledramaturgia. Sempre que é escalado, o público já espera mais um personagem memorável. Você se sente satisfeito por ter conquistado o seu espaço na TV ou continua em processo de constante autoaprendizado?
José Wilker: Bom, a pior coisa que pode acontecer para um artista, seja lá o que ele faça, é ter uma espécie de funeral. Então, prefiro me sentir, sinceramente, uma pessoa sempre começando. Não sou alguém de planejar, é claro. A minha carreira foi uma sucessão de acasos. Jamais sonhei, na minha infância, e, digamos, começo de juventude, em ser ator. Eu queria ser tudo, menos ator. Queria ser piloto de avião, engenheiro, físico; minhas expectativas eram nesse sentido. Adoro matemática; queria fazer algo ligado a isso e, de repente, quando pensei em conseguir um emprego, tipo, uma coisa qualquer para ter uma certa independência, aconteceu que, em Recife, na televisão, ofereciam teste pra locutor. Resolvi fazer, mas fui reprovado. E o cara que me aplicou o teste ficou muito acabrunhado por ter me reprovado e falou assim: “tem vaga pra ator, quer?” E eu peguei a vaga. Claro, tinha feito alguma coisa ligada a teatro na escola, nos Salesianos de Juazeiro e nos Salesianos de Recife. Então, fui fazer teatro e lembro que a minha estreia foi na televisão, na TV Rádio Clube. Em seguida, tive outra chance de fazer teatro na Festa da Mocidade, que acontecia numa praça, onde eu tinha que atravessar o palco puxando uma lata de goiabada. Eu até hoje não sei pra quê. Acho que era uma experiência moderna porque, se alguém fizer isso hoje, vão achar ser alguma experiência pós-moderna. Eu sei que tinha que fazer isso e eu fiz isso durante duas semanas. Então, trabalhar como ator, é sempre uma espécie de recomeço, de reinvenção, de recriação. A cada trabalho, descubro que você pode olhar pro ato de representar de forma nova e diferente, ou se não nova, pelo menos diferente. Pra ser ator, pra representar, ou seja, pra você fazer alguma coisa que de alguma maneira toque o coração das pessoas, que de alguma maneira contribua para que você promova, do ponto de vista da emoção, algum crescimento, você tem de estar permanentemente antenado. Mas, resumindo, se eu for medir o que me falta, eu diria que falta tudo.
Você sente que assim, de certa forma, é bom estar nesse patamar de excelência, mas também se sente pressionado conforme um personagem tem de ir de acordo com essa expectativa das pessoas?
JW: Não me sinto pressionado porque eu não posso, de maneira alguma, não acho que deva, colocar esse peso nas costas dos outros. Recentemente, fui fazer ‘Gabriela’. Tinha participado da primeira versão. Quando a gente fez ‘Gabriela’ (1975), vivia no Brasil sob uma ditadura militar e, ‘Gabriela’, na versão do Walter George Durst e Walter Avancini, precisava privilegiar, de alguma maneira, um símbolo qualquer, um sinal qualquer de protesto com relação à repressão sob a qual a gente vivia. O trilho de ‘Gabriela’ era muito em cima do protesto e, como na época eu me sentia muito inclinado a protestar, mas sempre na segurança de ‘vou protestar e ninguém vai me encanar’, portanto ‘tô à vontade, protestando via televisão’, que era um lugar privilegiado, eu aproveitei o meu temperamento do momento e aproveitei tudo isso para fazer o meu personagem, o Mundinho Falcão, que digamos, era o novo, entre aspas, porque era o ‘novo’ que, no correr da história, ia se adaptando, às circunstâncias de velhice que ele queria combater.
E na nova versão, quando viveu o coronel Jesuíno ....
JW: De repente, fazia o oposto. E fiquei pensando, ‘como é que eu vou transitar nisso?’. Fiquei olhando as elevações e vendo de que maneira estava sendo conduzida a adaptação, pela cenografia, pelo figurino, pela escolha do elenco, pela maneira que a gente estava sendo dirigido etc. Então, de repente escolhi um outro caminho. Tanto naquele quanto nesse, eu sou absolutamente responsável pelas minhas escolhas. Qualquer equívoco é um equívoco que eu atribuo plena e totalmente a mim. Qualquer acerto também. É muito importante que a gente tenha a adesão do público para o qual se dirige, que o respeite, que tenha, com relação ao seu trabalho, esse compromisso de respeito e reciprocidade porque, na medida em que te admiram, você tem uma dívida enorme a pagar por essa admiração.
Jesuíno teve ótima aceitação. Começou como o vilão que matou a esposa, em nome da honra, mas foi se redimindo porque amava aquela mulher. Foi ganhando essa dimensão humana que o público compreendia, não que aceitava. Você esperava que ele conquistasse essa empatia toda, mesmo sendo tão árido?
JW: Eu queria que as pessoas se reconhecessem nele. Se reconheceram tanto que ele passou a ser usado em ‘n’ circunstâncias, muitas vezes aparentemente de brincadeira, muitas vezes de verdade. Antes de começar a trabalhar, eu fiquei olhando o noticiário e pra minha história familiar e descobri coisas tais como “Nós do Brasil temos hoje uma lei chamada Lei Maria da Penha”. Por que existe essa lei? Porque foi necessária pra coibir um crime. Crime esse que ocorria em 1920, no interior da Bahia, no interior do Ceará e ocorre, hoje, aqui no Rio de Janeiro e em São Paulo. E, pior que isso, muitas vezes ocorre e ninguém nem se dá conta, porque as pessoas têm vergonha de publicamente reconhecer que esse tipo de coisa acontece. De um lado, investiguei isso e, por outro, a enorme capacidade que um certo tipo de formação que existia, e ainda existe e dificulta para os homens, para os machos, o exercício da ternura, do carinho, a exibição da própria fragilidade, da própria carência e assim por diante. Ainda é, por exemplo, educativo por parte das famílias dizer que “homem não chora”. Quer dizer, fui juntando uma porção de informações e achei que, independentemente de concordar ou não com aquela pessoa, com o coronel Jesuíno, era preciso que tivesse, com relação a ela, uma certa compreensão, que passava pela compreensão da própria personalidade, do seu caráter, passa por você. Quer dizer, você se reconhece naquilo.
Mas o coronel Jesuíno também teve sua veia cômica, fazendo muito sucesso...
JW: Evidentemente, também quis que fosse engraçado porque, se aquilo fosse pura e simplesmente a pedra bruta quebrada, talvez não atraísse a atenção. Então, também fui brincar, tentar trabalhar o lado do humor da personagem. Agora, quando eu falo esse monte de coisa, tem que dar um desconto de que a gente faz muita teoria a respeito disso ou daquilo, de representar, de se relacionar com as pessoas, mas eu não sei como é que é a ponte dessa teoria para a prática, entende? Mas eu tenho ‘n’ informações de histórias familiares que me alimentam pra esse tipo de personagem e que eu costumo usar.
A cultura nordestina e a questão da tradição ajudam na construção desses personagens...
JW: É, pode ser que tenha a ver... Eu digo o seguinte. Não vivo no Ceará desde 1963. Desde 63 que eu moro no Rio. Mas é evidente que 90% daquilo que é o meu temperamento é porque nasci no Ceará. Eu seria outra pessoa sem o Ceará. Ou, como aquela brincadeira, “você pode sair do Ceará, mas o Ceará não sai de você”. Quando os americanos chegaram à Lua, tinha um cearense lá vendendo ouro (risos).
Como você analisa a teledramaturgia contemporânea? Ainda acompanha novela?
JW: Não. É muito tarde pra mim. Não, não é só isso não, quer dizer, quando a gente está gravando, antigamente era aqui do lado da minha casa, eu descia a pé, voltava pra almoçar em casa, acabava de gravar e voltava pra casa. Eram quatro quadras da Globo. Era aqui do lado. Agora, eu gasto duas horas e meia pra chegar lá. Eu acabo de gravar por volta das 9 horas da noite. Chego em casa às 10h30, 11 horas da noite. Já acabou a novela. Não tenho saco de gravar pra assistir depois. Quando descobri o VHS, descobri que eu tinha um canal de televisão na minha casa que podia programar. Sem intervalo comercial, com os programas que queria. Minha prática com a televisão era essa. Ver os filmes que queria. E, durante um tempo, quando eu era de esquerda, não via. Porque achava, ridiculamente, imbecilmente, que a TV era veículo da ditadura, era só janela pra divulgar e esconder, de um lado as qualidades e de outro, os crimes.
Mas você já trabalhava em televisão nessa época?
JW: Já. Mas não tinha vontade de ver. Mas acho que a gente, agora, está em um momento muito legal de dramaturgia em televisão. De conviver lá dentro, acaba vendo, claro. Eu não tenho hábito de acompanhar, mas vejo. Teve uma época de ouro, que durou até meados dos anos 1980. Depois, passou por um período de readaptação, de reinvenção, com a chegada da TV a cabo, das outras mídias, dos novos sistemas, a televisão foi precisando se rearrumar. Ela passou por várias fases. O que era quando ela foi implantada no Brasil? Era rádio com imagem. A gente transportou tudo o que se fazia no rádio para a televisão. A linha de show, as novelas, os noticiários. Aí, de repente, no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, ela começou a encontrar linguagem própria. Com o tempo, passou a fazer uma coisa que foi usar técnicas de cinema porque a gente passou a trabalhar com câmeras muito menores. Isso libertou a novela do confinamento em estúdio, do “caixotão de palco”, e a gente foi evoluindo.
Wilker, se fosse para eleger um filme, um personagem, que estreou esse reconhecimento nacional, qual escolheria?
JW: ‘Dona Flor’ (filme baseado na obra de Jorge Amado, no qual interpretou o Vadinho). Preferia que fosse o Tiradentes, de ‘Os Inconfidentes’, de Joaquim Pedro de Andrade, mas foi ‘Dona Flor’, um filme que não acreditava que fosse fazer sucesso. Aliás, tinha certeza absoluta que iria ser um fracasso. Pensava que um filme erótico-espírita jamais poderia dar certo. E ‘Dona Flor’ não é um filme que projetou a gente apenas internamente; é um filme que teve repercussão no Taipei (capital de fato e maior cidade da República da China), Itália, Estados Unidos, Argentina, Japão. É um acontecimento até hoje.
Você ganhou notoriedade como crítico de cinema e tem um diferencial dos outros especialistas, que são mais acadêmicos, por se comunicar de maneira mais objetiva com o público. O fato de ser ator ajuda?
JW: Há uns anos, no Telecine, tinha um programa chamado “Cineview”, e eu era amigo da diretora do programa na época, Nice Benedicts. Um dia, a gente conversando aqui em casa – eles exibiam o Oscar – nessa época a premiação não era exibida em TV aberta – isso faz uns 15, 20 anos – e ela disse que sentia um buraco na transmissão, que era o intervalo comercial. Não tinha anunciante nos canais a cabo ainda. Aí ela me perguntou se eu não queria, por gostar de cinema, falar da cerimônia. E eu disse: “acho que vale a pena falar se a gente puder falar como a gente fala aqui, como sendo uma conversa e não uma coisa técnica. Que deve ser chato pra cacete para o telespectador”. Então, durante cinco, seis anos, fazia isso. Era como se tivesse conversando aqui em casa, na mesa do bar, com as pessoas. Nessa época, pintou de eu escrever para jornal. Ao invés de escrever de forma acadêmica, fazia como se estivesse falando em voz alta. Isso foi ficando, ficando e hoje não me sinto confortável com a coisa técnica porque acho que ela afasta, mas também me expõe porque acabo dando a cara à tapa. Já ouvi barbaridades. Quando você pega e diz que não gosta, todo mundo se sente agredido. O que é uma bobagem, eu digo, porque já li coisas a respeito do meu trabalho de uma agressividade monumental. Acho a crítica essencial, devo a minha carreira à crítica. Me sinto mais confortável quando recebo uma crítica do que um elogio. A crítica que me afeita, me promove, me provoca, me desafia. O elogio me deixa tranquilo, o meu ego alimentado, é legal, eu sou “gostoso”. Mas tem o limite.
Como você analisa o atual cenário do cinema brasileiro?
JW: O primeiro grande prêmio que o Brasil precisa ganhar é a adesão do seu público. Esse é o melhor prêmio que a gente merece e deve ganhar. O Oscar...não sei se é tão importante. Não muda porra nenhuma. Nosso problema era de produção. Aí, até como forma de censura, o governo resolveu que ia estimular a produção. Ele estimulou, mas não equipou o País para consumir esse produto. Então, a gente tem, nesse momento exato, 200 filmes prontos, pelo menos. E 200 filmes na prateleira, invisíveis. Nossa produção, há 30 anos, ocupava 25% de market share. Hoje, nos anos bons, chega a 10%. Em 2011 foi bom, e tivemos entre 10 e 11%. Em 2012, perdemos 4% desses dez e produzimos mais filmes que o ano anterior. Então, a gente já resolveu a questão da produção, mas não a do consumo dessa produção. O Brasil tem menos salas que Manhattan, um bairro de Nova York, menos que a Argentina, um país de 30 milhões de habitantes. Somos 190 milhões e temos 2.400 telas. Por outro lado, a gente fala português, faz filmes em português, então, o nosso mercado é aqui. Os filmes são feitos para serem consumidos no mercado nacional. Senão, as chances dele fora são muito pequenas. A gente tem grandes problemas a serem encarados. Viramos as costas para a América Latina, que é, potencialmente, o melhor mercado pra gente trocar. O que o Brasil sabe do cinema da América Latina? Só o da Argentina e porque somos inimigos da Argentina. Então, importa para não gostar e acaba se deparando com bons filmes. Agora, o que sabemos do cinema do Chile, Peru, Venezuela, Equador, México, Caribe, do cinema em si feito em língua espanhola? Nada. Eles não chegam aqui.
Como avalia a qualidade do cinema brasileiro?
JW: Muito boa. A gente está fazendo filmes muito bons. Do ponto de vista técnico, há filmes tão bons quanto de qualquer outro país. Até porque a técnica não é mais propriedade de nenhum país. O que usa no Brasil é o mesmo que os caras usam em Hollywood. Eles só têm mais dinheiro.
Que diretores brasileiros têm feito um trabalho interessante?
JW: O Breno Silveira, o Wagner Assis, o Beto Brant, o Cacá Diegues, o Bruno Barreto, o pessoal de Recife, o Kleber Mendonça Filho, que fez um belíssimo filme, ‘O Som ao Redor’, não um filme para multidões, mas um belo de um filme que honra qualquer cinema do mundo. Tatá Werneck, Tatá Amaral, Sandra Werneck, pô não dá pra citar, teria que citar cem nomes. O Brasil, nos últimos anos, lançou mais de 150 novos diretores, e todos eles muito talentosos, formados em boas escolas de cinema. Tem uma gente muito boa, do ponto de vista técnico. De repente, a gente se dá o luxo de exportar fotógrafos. A gente não tem é dinheiro. Não tem dinheiro porque não tem mercado. O Brasil tem filmes, não tem cinema ainda.
Você tem a curiosidade de acompanhar o que está sendo criado no cinema nordestino?
JW: Sim, sim. O Karim Aïnouz (cearense) é um cara que eu acompanho desde o primeiro filme dele. Eu estava em Cannes quando ele o exibiu. É uma das minhas tristezas até hoje não ter feito um filme com ele. Lembro em parte o que foi o ‘Madame Satã’. Que maneira de filmar especial. Agora, estou querendo fazer um trabalho, já escrevi, mas é meio iconoclasta a minha leitura da história do Juazeiro. Não sei quando vou fazer. Quero fazer no cinema. É centrado no beato José Lourenço, que foi para o Caldeirão. Uma coisa terrível. Pouca gente sabe disso. Só há a referência em um livro, de Rui Facó, o ‘Cangaceiros e fanáticos’, no qual conta como liquidaram com o Caldeirão. Há a história do boi santo também. E a primeira peça que fiz aqui e abriu a minha carreira no Rio foi uma peça sobre Juazeiro do Norte, ‘O som dos penitentes’. Estava desempregado e li que ia ter uma peça sobre o Juazeiro. Me candidatei. Pensei: “ninguém conhece mais o assunto que eu”. Mentira. Fui aceito para fazer uma ponta como assistente de direção. Foi quando comecei a sobreviver de teatro aqui.
Apesar de ter saído há bastante tempo do Ceará, ainda tem algum costume regional?
JW: Meu costume permanentemente está ligado à alimentação. Aqui em casa a gente tem, pelo menos, uma vez por mês, um baião de dois, que é uma coisa que a minha mãe fazia e da qual não abro mão. Baião de dois com queijo de coalho e uma carne de sol, não dá pra não ter. Por que eu leio? Porque aprendi a ler em Juazeiro, com o meu tio professor de Português. A minha curiosidade pelo mundo é uma curiosidade que é cearense. O melhor restaurante de comida vietnamita de Paris é dirigido por um cearense, que faz a melhor sopa de pequi do mundo. Na China, depois de ficar uma semana comendo pato, fui a um catálogo telefônico e vi “brazilian cuisin”. Aí, liguei e falei: “alô”. Era um cearense que estava lá, na única churrascaria de Pequim. Sócio de um alemão. Uma mistura maluca. O alemão criava os bois, e o cearense administrava a churrascaria. Era muito ruim a churrascaria, mas estava indo muito bem.
E sua relação com Juazeiro?
JW: Quando morava lá, não tinha luz elétrica durante uma época, que eu me lembre. Depois, a luz funcionava por um período de duas horas por noite. Tinha um negócio chamado, Centro Regional de Publicidade. Havia uns alto-falantes pela cidade, uns quatro ou cinco. Um locutor anunciava o comércio local e tinha o momento em que tinha música “de mim para você”, “eu ofereço essa canção”, aquela coisa. E era um mundo que me fascinava. Isso era um lado. De outro lado, tinha a casa das minhas tias – a minha mãe, meu pai e meus irmãos já moravam em Recife – eu ia e voltava várias vezes. Hoje, vou muito pouco ao Ceará. Porque não dá tempo. Férias de ator é desemprego. Meu apego à leitura, à música, à magia (em Juazeiro tem essa mística especial), vem do Ceará. Eu via aquelas pessoas que passavam na frente da minha casa, deixando um rastro de sangue, pois estavam vindo de joelhos desde de não sei onde, pagando promessa. Achava uma coisa absurda. Na Semana Santa, a gente era confinado à noite, porque havia uns penitentes que se flagelavam nas ruas, com capuz, tipo ‘Ku Klux Klan’. Afora isso, eu, pra me vingar, de ter que ceder a minha cama, durante as romarias para os romeiros, vendia pedaços de roupas de luto das minhas tias como relíquia da batina do padre (Padre Cícero). Deve estar fazendo milagre até hoje por aí. Tem toda uma história que é fascinante. Meu gosto, meu olhar pra arte, aprendi lá.
Você acha importante esse processo de viver em vários lugares ao mesmo tempo em que preserva suas raízes?
JW: Tem que ter uma base. Só a partir dela se constrói o resto. Se eu não tivesse tido os bons professores que tive de Francês, de Português, de História, de Desenho, em Juazeiro, eu dificilmente teria evoluído para algum lugar. Não estou dizendo com isso que eu evoluí pra algo genial. Não. Eu só evoluí um pouquinho. Mas eu tive um professor de Francês, que me chamou a atenção, pra todo o Romantismo Francês de Voltaire, Diderot, Descartes, Chateaubriand. Quando fui morar em Paris, eu sabia falar, não o francês do cotidiano, que só vivendo lá que se aprende, mas eu me entendia. E foi lá, em Juazeiro, que minha curiosidade em relação à História me foi despertada por um professor de História bom que eu tinha. Da mesma forma que o Desenho. A Matemática. Eu tinha um professor que era um padre polonês, nos Salesianos, que me chamou a atenção pra Matemática de um jeito que não é aquele que faz as pessoas odiarem a Matemática. Eu passei a gostar de Equação do 2º grau, Números Complexos, com os caras. Coisa fascinante.
E neste ano, você está gravando um programa para o Canal Brasil?
JW: É um programa de entrevistas com atores. Estou de férias da TV, da Rede Globo, por enquanto. E comecei a dirigir uma peça chamada ‘Rain Man’, adaptação para o teatro do filme com o Dustin Hoffman e o Tom Cruise. Depois, vou fazer, no segundo semestre, Virginia Woolf no teatro. Nesse meio-tempo, tenho que lançar o meu filme em abril, ‘Giovanni Improtta’ (o qual é diretor) e tem mais um monte de coisas aí. É aquela coisa de acasos. Como não tem aquela indústria, a gente nunca tem certeza do que a gente vai poder fazer. Tenho certeza dessas duas, três coisas porque isso já foi captado. A gente já tem teatro, elenco, já pagou tudo, então a gente vai fazer. Mas eu quero filmar esse filme sobre Juazeiro, não sei quando vou poder. Depois do ‘Improtta’, fiz três filmes. ‘Os Velhos Marinheiros’, ‘A Casa da Mãe Joana 2’, com o Hugo Carvana, ‘Isolados’ (de Tomás Portella). Esses não têm previsão de estreia. Ah, participei também de ‘A Hora e a Vez de Augusto Matraga’, em que fiz o papel de Joãozinho Bem-Bem. Ele foi premiado no Festival do Rio 2011.
Você já fez vários personagens que marcaram, mas, se você pudesse, riscaria da sua lista algum personagem que se arrependeu de ter feito?
JW: Não, não. Eu posso contar nos dedos de uma mão as coisas que eu fiz que são ruins. Mas eu nego que fiz. Eu tive muita sorte. Eu acho que tem umas três, quatro coisas que fiz muito mal, muito mesmo. Tem umas novelas que fiz mal, mas eu nego que fiz (risos).
Quem é o homem por trás do artista? Como você se definiria?
JW: Eu tenho um olhar pra vida muito irônico, muito debochado. Não me levo muito a sério. Não consigo brigar com ninguém. Dificilmente me irrito. Eu gosto de me divertir, ser feliz. É uma coisa que talvez tenha herdado da minha mãe. Ela dizia assim: “eu tive seis filhos e apontava pra mim e falava: o único esquisito é esse”. E o meu pai, que nunca tinha me visto fazer nada, foi me ver fazer uma peça de teatro no Centro de Convenções, em Olinda. Um troço enorme, cinco mil pessoas. Quando terminou o espetáculo, falei assim: “quero dedicar o espetáculo de hoje a uma figura muito importante que está aqui presente, o meu pai”. Pedi pra ele levantar, ele levantou. O pessoal aplaudiu muito. Aí, ele foi no camarim e me falou a seguinte frase: “tá tudo muito bom, tá tudo muito bem, mas, me diga uma coisa: quando é que você vai tomar vergonha na cara e começar a trabalhar?”. Então, não tenho com o que me preocupar. Eu sei de onde eu vim, entendeu? Muitos colegas meus, de escola, dizem que Deus é injusto porque não deu pra eles a mesma coisa que deu pra mim. Mas Ele não me deu nada. Essas coisas a gente vai ganhando com o trabalho, com o empenho, a autocrítica ou com o teu desapego. Sem pretensão. Quando você, de repente, começa a se achar melhor que os outros, não dá certo. Nós somos todos iguais. Temos a obrigação de encontrar uma forma de ser feliz. Sendo que, com isso, a gente não deve abusar do espaço de ninguém. O teu espaço é sagrado e você vai ser feliz com ele assim.
Créditos:
Entrevista por Juliana Colares
Fotos Gustavo Pellizzon
Diário do Nordeste