2 de fevereiro de 2014

Crônica dos enjeitados

O menino mais novo encosta-se ao pai, que o enxota. “Vá brincar”, diz. “Brincar mais quem?”, pergunta o filho. Não há ninguém em casa além da mãe e dos bichos enjeitados. Os irmãos aprendem as letras na escola indígena, a única naquele pedaço esturricado de Canindé. 

O cachorro espalha-se na sombra do pé de marmeleiro, um fiapo de verde na amarelidão sertaneja. Num canto do alpendre, a cabra rumina o bocado engolido no almoço. Debaixo do sol de 40° C, Evenílson, 12 anos, dispara. Chuta uma bola que só existe na imaginação de menino criado no chão esquecido da comunidade de Santa Maria, zona rural do município.

Rosa, 51 anos, escora-se na porta. De lá, atira um punhado de arroz cozido no chão. É parte do sustento dos brutos. “Essa cabra só quer comer arroz”, ri. “É melhor botar no Bolsa Família”, graceja o marido, Benício, 51. Gabriela, o ruminante, mastiga sem pressa. Quem a vê ali, trepada nas quatro patas, nem imagina que, sete meses atrás, havia escapado do sacrifício. “Um cavalo mordeu as costas dela. Não andava, arrastava as patas de trás”, recorda Benício. “Pedi pra criar porque iam mandar pra Canindé. Ia morrer.”


Não morreu. “Eu mesmo fiz a fisioterapia. Estiquei as pernas e tudo. Tornou a andar”, diz Benício. “Assim que chegou, forrei uma caixa de papelão e botei ela dentro”, atalha Rosa. Hoje, a cabra vive a custo das mamadeiras de leite, sobras de comida de panela, farelos de milho, palha e o que mais aparecer. Do coice, restou a dificuldade em flexionar a pata traseira direita, que não a impede de trotear no terreiro nas estripulias com Evenílson. Gabi aprendeu que o rejeito é um luxo que dois anos sem chuva transformam em extravagância. E assistiu, com o tempo, ao crescimento da fauna de crias que, por uma razão ou outra, foram negadas pela mãe. “Tudo aqui é enjeitado. O cachorro, o periquito, a jumenta, os gatos, os pintos” A despeito do enjeito da natureza, a família de Benício floresce. É seca, mas, feito juazeiro, deita as raízes na fundura do solo, caçando o sustento. Escassa, a água multiplica-se para o asseio das visitas. O de comer brota dos caixotes de madeira da cozinha. De parede a parede, os vãos para as redes anunciam que, naquela casa, o pouco se divide em partes iguais. Na última semana, participei, ao lado da jornalista Iana Soares, da rotina de uma família de agricultores cearenses cuja vida vem sendo castigada pela falta d’água. Esperava aspereza e viventes embrutecidos pela tragédia política. Encontrei generosidade e partilha.


OPovo

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