21 de abril de 2015

Documentário "Vaqueiros" é fruto de nove anos de pesquisa em Morada Nova, ícone da cultura vaqueira

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Cenas de "Vaqueiro": embora aborde de maneira geral o universo desse personagem nordestino, filme destaca a devoção do município de Morada Nova
Do cenário de terra avermelhada e galhos contorcidos pela seca, emerge a memória de homens de couro forte que guardam como grande conquista o ato bravio de pegar boi no mato. Símbolo da cultura cearense, o vaqueiro - que traz consigo a tragédia de amar, matar e cultuar o boi nas terras sertanejas - ganha espaço nas telas de cinema, por meio do longa-metragem "Vaqueiros", do jornalista Rogério Nogueira, com fotografia de Éder Bicudo.
O filme, fruto de nove anos de pesquisa sobre a tradição vaqueira no município de Morada Nova, traz depoimentos de dez vaqueiros da região, além de entrevistas com especialistas e estudiosos do assunto. Durante os 90 minutos de exibição, o espectador é capaz de reconstruir não apenas a história dos protagonistas e as dificuldades e desafios do contexto em que vivem, mas também mergulhar no universo simbólico que permeia a cultura vaqueira no sertão cearense e, especialmente, em Morada Nova.
Depois da pré-estreia no último fim de semana em Fortaleza, no Cinema Benfica, o documentário deve, agora, ganhar o País com a participação em festivais. Fora do circuito comercial, a próxima exibição deve acontecer no mês de junho, em Morada Nova, durante a tradicional festa do Vaqueiro, que acontece há mais de 70 anos na cidade.
Ideia
Gestado ainda em 2006, o longa-metragem é fruto de uma pesquisa etnográfica intensa e do convívio significativo entre o diretor e os vaqueiros. "A ideia se deu quando tive o primeiro contato com Sivaldo Carneiro, curador do Museu do Vaqueiro. Trocamos ideias para fazer esse documentário em Morada Nova, porque tinha alguns aspectos dessa cultura que estavam se perdendo", conta Rogério Nogueira.
O documentário tem a preocupação de abordar a memória e o universo folclórico, político e cultural do vaqueiro. Apesar dos nove anos de pesquisa, as imagens começaram a ser captadas apenas em 2011. As filmagens de fato foram iniciadas em 2014, com captação dos depoimentos e entrevistas. Através das experiências de vida de dez vaqueiros do município, o filme discute temas centrais do sertão cearense, como a seca, a regulamentação da profissão do vaqueiro e a polêmica em torno das vaquejadas. Ao mesmo tempo, há uma carga simbólica que permeia todo o longa. A fortaleza das mulheres dos vaqueiros, a relação deles com o boi e as ressignificações em torno de um trabalho duro - que, muitas vezes, confere a esses homens o status de herói do sertão - estão presentes na obra.
Além disso, o depoimento de diferentes gerações de vaqueiros exaltam as diferenças e adaptações que o ofício vem sofrendo ao longo dos anos e os aspectos culturais que se perdem.
"O audiovisual tem grau de fixação grande, então o que esperamos com esse filme é deixar um legado como pesquisa, além de revelar a memória do vaqueiro, que vai além do estigma do guerreiro que derruba boi. Na verdade, ele é herói porque derruba muitas outras dificuldades da vida sertaneja e tenta, ainda hoje, um espaço para se inserir na sociedade", afirma o diretor Rogério Nogueira.
Sertões
O filme utiliza imagens coloridas e em preto e branco, intercalando reflexões do presente com fatos históricos da cultura do vaqueiro em Morada Nova - que reconhece e cultua a tradição.
Nesse conjunto, a obra dialoga com dois sertões do imaginário cearense: aquele difícil dos tempos de seca e o da fartura e da diversidade da fauna e flora durante o inverno. Revezando-se ainda entre os sertões imaginado e vivido, o documentário aborda desde a rotina do vaqueiro - que acorda diariamente às 4 horas da manhã e não tem um dia sequer de descanso, porque sua sina é "trabalhar até quando o corpo aguentar" - até as lendas e causos em torno do ofício de pegar boi.
Nesse sentido, o espectador tem acesso, por exemplo, à reconstrução da história do Boi Moleque, um dos mais bravos do sertão cearense. Um boi de preto brilhante, chifres bem arqueados e valentia extrema - não havia homem de couro forte que conseguisse domá-lo na mata fechada.
Eventualmente, ele acaba capturado por três vaqueiros de coração acelerado, capazes de correr baixio de sabiás e terrenos de xique-xique em nome da própria coragem.
Os depoimentos de "Vaqueiros" traçam ainda um perfil cultural dos homens de couro, capazes de enxergar na natureza o que as pessoas normais não veem, como a cor do boi e o desenho de seus rostos. Nesse olhar de atenção, eles identificam a origem do animal, seus donos e até mesmo o tempo de valentia no mato.
O ato que transforma os vaqueiros em guerreiros, porém, é também sua tragédia. "O vaqueiro já traz em si essa tragédia. Ele cria o boi, alimenta, dá nome. Mas também mata o boi", diz o pesquisador Oswald Barroso. E acrescenta: a brincadeira do bumba meu boi é uma forma que o vaqueiro encontrou para ressuscitá-lo, para cultuá-lo e mantê-lo vivo no sertão, mesmo que nas suas lembranças.
O filme é um alerta para a perda gradual das tradições culturais do vaqueiro. "É preciso resgatar ou pelo menos guardar a memória do vaqueiro para as futuras gerações. Esse documentário é uma realidade, mas é preciso guardar cada vez mais histórias sobre a cultura vaqueira no Ceará e em Morada Nova", diz Sivaldo Carneiro, curador do Museu do Vaqueiro.
Beatriz Jucá

Repórter

Diário do Nordeste

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